Era assim…
Era pequenino e enquanto dormia ou chorava a família reunida rezava. Era o terço como habitual dirigido pelo avô materno ou pelo avô paterno, dependia da casa onde estivesse. Quando o avô não podia era o pai, a mãe ou uma das empregadas, “criadas de servir” que tomava a chefia de dirigir o terço pelas almas do purgatório e “ pelas alminhas desta casa que Deus lá tem”. As três avés-marias finais eram a S. Sebastião para que acabasse com a guerra, a fome, a praga da peste.
Assim foi crescendo até rezar com entusiasmo junto do avô ou do pai.
Como não bastasse e ouvia contar aos vizinhos e vizinhas ou crianças da minha idade coisas da noite desagradáveis para uma criança. Era o medo da noite que me levava à cama “ com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e o Espírito Santo” e, cobrindo a cabeça, continuavam as “aves-marias” para que a noite fosse boa e não aparecessem ladrões, nem incêndios que nos levassem a casa e a vida.
Quando atingi os oito anos ou nove comecei a descobrir, por mim, o medo que deixou de ser medo. Só existe medo na cabeça das pessoas. À falsa fé a gente pode ter medo de um malfeitor que nos possa fazer mal… Mas é sempre um problema de vivos e não de mortos; nem de lobisomens , nem de almas penadas ou de procissões de defuntos, não é da noite, também pode ser de dia.
A minha oração continuava sempre para além do terço na “cama e não sei se rezava muito ou pouco sei que acordava de manhã, continuava “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina. Amém". Sempre me perseguia uma vontade de saltar fora da cama e estar sempre distraído com trabalhos da escola, de atividades de desenho, pintura e outras coisas da lavoura. Filho como era de pais agricultores, com muito trabalho, criadas e jornaleiros.
Um dia, já tinha 10 anos, resolvi preparar o arroz de padre-nossos e o caldo para a mãe, quando chegasse a casa, ficasse contente por ter o almoço feito para toda a gente que vinha do campo para almoçar… O arroz de padre-nossos era um arroz solto com pedaços de carne por causa dos trabalhadores.
A avó materna já não estava em condições de cozinhar por sua idade e demência.
Assim cozinhei muitas vezes nas férias e o caldo que preparei para esse primeiro almoço foi ao jeito do que a minha avó fazia há alguns anos e a minha mãe repetia…Um segredo desse caldo era cozer um pedacito de toucinho e, antes de acabar, retirá-lo para numa tijela amassar com o exterior da concha da colher. O couro era comido e o resto lançado no caldo para mais umas fervuras…
Todos gostavam do caldo feito na nossa casa, as jornaleiras diziam mesmo que só pelo caldo já valia agora trabalhar para a casa da tia “Antónia Catrina” assim era conhecida a minha avó materna cujo nome de batismo era Antónia Rodrigues Araújo, irmã de Manuel Araújo, do Cruzeiro e de José Araújo, da Regadia.
Deste modo fui sempre um aficionado pelos sabores da cozinha e não foi por acaso que nos acampamentos no pinhal do Moledo fui o cozinheiro.
Um dia aconteceu que deixei esturrar a comida, isto é, deixei entrar o “bispo”, dizia-se, no tacho.
O que irão dizer os colegas quando chegarem da praia?
Isto tem de desaparecer, há que acabar com o esturro, não quero ficar mal. Ora essa!... Tal coisa nunca aconteceu.
Fui deitando uma colher de margarina e muitas seguida de muitas outras até chegar ao paladar agradável. Sempre ia melhorando com a colher e mexer por cima em lume brando por cima. Nada de chegar ao fundo.
Os colegas chegaram. Comeram, gostaram verificaram que tinha outro paladar e, só no fim, quando os encarregados de lavarem os tachos é que descobriram que o arroz estava esturrado.
Gostava de fazer e descobrir novos sabores por isso o alecrim, a salsa, a hortelã, as urtigas, o unto, o toucinho, a chouriça ou chouriço, a carne, os ossos de porco ou de vaca, “folhas de loureiro” pau tenro de figueira, o limão, um pau de chocolate, sempre de tudo, menos ou mais, conforme a quantidade, faz a diferença pelo menos é desenjoativo e não se come sempre o mesmo, com o mesmo paladar.
Tudo isto, e mais que esquece, porque tinha vontade de fazer felizes os que me acompanhavam na família ou fora dela. Ficava feliz quando os outros ficavam contentes.
Por isso, me habituei a estar bem com quem está bem e a estar mal com quem está mal.
O “rezar” ficou para trás?
Não, simplesmente passou a ser ignorado no que escrevia sobre a minha atividade de cozinha.
Rezava todos os dias várias vezes, gostava de ir à missa, ainda em latim e de ser ativo também nestas questões de prática religiosa e de festas religiosas. Ajudava à missa: “Santa Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc, et in hora mortis nostrae”. Amen.
Aqui reportei-me ao tempo em que vivia a esperança de ir para o Seminário, pois queria ser padre, ainda que tenha referido os cozinhados já no tempo da teologia que viriam após cerca de 20 anos
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