Boa tarde,
Envio hoje um texto que há tempos me chamou a atenção, mas que só agora
( parece que os serviços portugueses no Vaticano andam como cá, a passo de caracol...)
aparece em tradução portuguesa.
Mesmo que "o Natal já tenha passado..." o sentido deste texto diz-nos o contrário.
Para além do interesse que tem a leitura do próprio texto, para mim valeu também por aquilo que escrevo na nota final
Com um abraço.
P. Jorge Alves Barbosa
Obrigado e aproveito para o Blog
PAPA BENTO XVI
O NATAL COMO EXPRESSÃO
DE TODO O MISTÉRIO DA REDENÇÃO
Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011
A festividade do Natal fascina, tanto hoje como outrora, mais do que as outras grandes festas da Igreja; fascina porque todos, de certo modo, intuem que o nascimento de Jesus tem a ver com as aspirações e as esperanças mais profundas do homem. O consumismo pode distrair desta saudade interior, mas se no coração existe o desejo de receber aquele Menino que traz a novidade de Deus, que veio para nos oferecer a vida em plenitude, as luzes dos adornos natalícios podem tornar-se sobretudo um reflexo da Luz que se acendeu mediante a Encarnação de Deus.
Nas celebrações litúrgicas destes dias santos vivemos de maneira misteriosa mas real a entrada do Filho de Deus no mundo e fomos iluminados mais uma vez pela luz do seu fulgor. Cada celebração é presença actual do mistério de Cristo e, nela, prolonga-se a história da salvação. A propósito do Natal, o Papa São Leão Magno afirma: “Embora a sucessão das obras corpóreas agora tenha passado, como foi ordenado antecipadamente no desígnio eterno..., todavia nós adoramos continuamente o mesmo parto da Virgem que produz a nossa salvação” (Sermão sobre o Natal do Senhor, 29, 2), e esclarece: “Porque aquele dia não passou, de tal modo que tenha passado também o poder da obra que então foi revelada” (Sermão sobre a Epifania, 36, 1). Celebrar os acontecimentos da Encarnação do Filho de Deus não é uma simples recordação de eventos do passado, mas significa tornar presentes aqueles mistérios portadores de salvação. Na Liturgia, na celebração dos Sacramentos, aqueles mistérios fazem-se actuais e tornam-se eficazes para nós, hoje. São Leão Magno afirma novamente: “Tudo aquilo que o Filho de Deus fez e ensinou para reconciliar o mundo, não o conhecemos somente através da narração de obras levadas a cabo no passado, mas vivemos sob o efeito do dinamismo de tais obras presentes” (Sermão 52, 1).
Na Constituição sobre a Sagrada Liturgia o Concílio Vaticano II ressalta o modo como a obra da salvação realizada por Cristo continua na Igreja, mediante a celebração dos santos mistérios, graças à acção do Espírito Santo. Já no Antigo Testamento, no caminho rumo à plenitude da fé, temos testemunhos do modo como a presença e a acção de Deus é interposta através dos sinais, por exemplo o sinal do fogo (cf. Ex 3, 2 ss.; 19, 18). Mas a partir da Encarnação realiza-se algo surpreendente: o regime de contacto salvífico com Deus transforma-se radicalmente e a carne torna-se o instrumento da salvação: Verbum caro factum est, “o Verbo fez-se carne”, escreve o evangelista João, enquanto um autor cristão do século III, Tertuliano, afirma: Caro salutis est cardo, “a carne é o fulcro da salvação” (De carnis resurrectione, 8, 3: PL 2, 806).
O Natal é já o primeiro fruto do sacramentum-mysterium paschale, ou seja, o princípio do mistério central da salvação que culmina na paixão, morte e ressurreição, porque Jesus dá início à oferenda de si mesmo por amor, desde o primeiro instante da sua existência humana, no seio da Virgem Maria. Por conseguinte, a noite de Natal está profundamente vinculada à grande vigília da noite da Páscoa, quando a redenção se realiza no sacrifício glorioso do Senhor morto e ressuscitado. O próprio presépio, como imagem da Encarnação do Verbo, à luz da narração evangélica, já alude à Páscoa, e é interessante ver como em alguns ícones da Natividade, na tradição oriental, o Menino Jesus é representado envolto em faixas e colocado numa manjedoura que tem a forma de um sepulcro; uma alusão ao momento em que Ele será deposto da cruz, envolvido num lençol e depositado num sepulcro escavado na rocha (cf. Lc 2, 7; e 23, 53). Encarnação e Páscoa não se encontram uma ao lado da outra, mas constituem os dois pontos-chave inseparáveis da única fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus Encarnado e Redentor. Cruz e Ressurreição pressupõem a Encarnação. Só porque verdadeiramente o Filho, e nele o próprio Deus, “desceu” e “se fez carne”, a morte e a ressurreição de Jesus constituem acontecimentos que nos são contemporâneos e nos dizem respeito, nos arrebatam da morte e nos abrem para um futuro em que esta “carne”, a existência terrena e transitória, entrará na eternidade de Deus. Nesta perspectiva unitária do Mistério de Cristo, a visita ao presépio orienta para a visita à Eucaristia, onde está presente de modo real o Cristo crucificado e ressuscitado, o Cristo vivo.
Então, a celebração litúrgica do Natal não representa apenas uma recordação, mas é sobretudo um mistério; não é só memória, mas também presença. Para captar o sentido destes dois aspectos inseparáveis, é necessário viver intensamente todo o Tempo natalício como a Igreja o apresenta. Se o considerarmos em sentido lato, ele prolonga-se por quarenta dias, de 25 de Dezembro a 2 de Fevereiro, desde a celebração da Noite de Natal, até à Maternidade de Maria, à Epifania, ao Baptismo de Jesus, às bodas de Caná, à Apresentação no Templo, precisamente em analogia com o Tempo pascal, que forma uma unidade de cinquenta dias, até ao Pentecostes. A manifestação de Deus na carne é um acontecimento que revelou a Verdade na história. Com efeito, a data de 25 de Dezembro, única à ideia da manifestação solar — Deus que aparece como luz sem ocaso, no horizonte da história — recorda-nos que não se trata unicamente de uma ideia, aquela segundo a qual Deus é a plenitude da luz, mas de uma realidade para nós homens já realizada e sempre actual: tanto hoje como outrora, Deus revela-se na carne, ou seja, no “corpo vivo” da Igreja peregrina no tempo, e nos Sacramentos concede-nos hoje a salvação.
Os símbolos das celebrações natalícias, evocados pelas Leituras e pelas orações, conferem à liturgia deste Tempo um profundo sentido de “epifania” de Deus no seu Cristo - Verbo encarnado, ou seja, de “manifestação” que possui também um significado escatológico, isto é, orienta para os últimos tempos. Já no Advento, as duas vindas, a histórica e a do fim da história, estavam directamente vinculadas entre si; mas é em particular na Epifania e no Baptismo de Jesus que a manifestação messiânica se celebra na perspectiva das expectativas escatológicas: a consagração messiânica de Jesus, Verbo encarnado, mediante a efusão do Espírito Santo de forma visível, completa o tempo das promessas e assim inaugura os últimos tempos.
É necessário resgatar este Tempo natalício de um revestimento demasiado moralista e sentimental. A celebração do Natal não nos propõe apenas alguns exemplos a imitar, como a humildade e a pobreza do Senhor, a sua benevolência e o seu amor pelos homens; mas é sobretudo um convite a deixar-se transformar totalmente por Aquele que entrou na nossa carne. São Leão Magno exclama: “O Filho de Deus... uniu-se a nós e vinculou-nos a si de tal modo que a humilhação de Deus até à condição humana se tornasse uma elevação do homem até às alturas de Deus» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 27, 2). A manifestação de Deus tem como finalidade a nossa participação na vida divina, na realização em nós mesmos do mistério da sua Encarnação. Tal mistério constitui o cumprimento da vocação do homem. São Leão Magno explica-nos novamente a importância concreta e sempre actual do mistério do Natal para a vida cristã: “As palavras do Evangelho e dos Profetas... inflamam o nosso espírito e ensinam-nos a compreender a Natividade do Senhor, este mistério do Verbo que se fez carne, não tanto como uma recordação de um acontecimento passado, mas sobretudo como um facto que se realiza sob os nossos olhos... é como se, na solenidade hodierna, ainda se proclamasse: “Anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu para vós um Salvador, que é Cristo Senhor” (Sermão sobre o Natal do Senhor, 29, 1). E acrescenta: “Reconhece, cristão, a tua dignidade e, tendo-te tornado participante da natureza divina, presta atenção a não recair, com uma conduta indigna, de tal grandeza na baixeza primitiva” (Sermão 1 sobre o Natal do Senhor, 3).
Estimados amigos, vivamos este Tempo natalício com intensidade: depois de termos adorado o Filho de Deus que se fez homem e foi colocado numa manjedoura, agora somos chamados a passar ao altar do Sacrifício, onde Cristo, o Pão que desceu do céu, se nos oferece como verdadeiro alimento para a vida eterna. E aquilo que nós vimos com os nossos olhos, na mesa da Palavra e do Pão de Vida, o que contemplámos, aquilo que as nossas mãos tocaram, ou seja o Verbo que se fez carne, anunciemo-lo com alegria ao mundo e testemunhemo-lo generosamente com toda a nossa vida.
NOTA FINAL:
Esta imagem apresenta um ícone de Andrej Rublev, pintor celebrizado com o Banquete de Abraão ou “Philoxenia”, considerado a melhor representação da Santíssima Trindade. Neste ícone sobre o Nascimento, aqui evocado por Bento XVI – e identificado pelo jornalista Sandro Magister escrevendo no seu Blog “Bento XVI repinta o Natal com o pincel de Rublev” – o Menino Jesus é representado como que envolto num lençol e colocado num caixão.
O que mais despertou a minha atenção nesta Catequese de Bento XVI, e me levou a partilhá-la, para além do interesse teológico que reveste e a relação da teologia com a arte que é sempre interessante e sugestiva, é o facto de esta mesma ideia de Bento XVI e do ícone estar também já presente num dos mais célebres Villancicos de Natal do séc. XVI português, da autoria (pelo menos a música, pois o texto não sabemos) do compositor de Santa Cruz de Coimbra, D. Pedro de Cristo. Colocado perante o presépio, o poeta/compositor canta (o texto é em castelhano como era então usual e penso que dispensa tradução):
Ay mi Diós que causa ha sido
que sufrais frio e dolor?
- Todo lo hace el amor.
Ay mi Señor, que vos veo
vuestra sangre derramar!...
- Esto solo es comenzar
a cumplir con el deseo.
COM UM ABRAÇO
P. Jorge Alves Barbosa
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