Quando a pessoa é degradada a objecto de troca ou de aluguer
Vivemos tempos complexos e hoje especialmente marcados pela crise, que diz respeito directamente aos aspectos mais materiais da nossa vida pessoal e colectiva, as questões da economia, dos mercados, da especulação financeira. Ainda recentemente uma professora universitária brasileira que conheci num Congresso na Romênia, em Outubro passado, sobre o matrimônio nas grandes religiões monoteístas, e que estava de visita a Portugal, me dizia que os seus familiares que aqui residem vivem muito atribulados e sem esperança, por causa das grandes dificuldades que estão a passar; e muitos brasileiros estão a regressar ao Brasil, considerando que afinal a esperança que tinham depositado nas possibilidades que poderiam encontrar em Portugal foram goradas e por isso tiveram de regressar, agora que a economia brasileira se encontra em pleno florescimento.
Sentimos todos que a crise é global, e as agências de notação financeira como que se divertem neste jogo de altos e baixos, de
classificações, determinando o lugar que cada país está a ocupar, sendo que, no nosso caso já estamos quase no lixo. Lembrei-me do que me aconteceu quando era criança e freqüentava a 3a classe. Porque não tinha estudado bem a lição, um texto de leitura sobre o Mosteiro da Batalha, fui numa aula desclassificado e colocado pelos ao meu esforço e real saber.
No caso das agências de notação financeira foi-me dito que elas são financiadas pelos próprios países que analisam e classificam. Não percebo muito destas coisas, devo dizer. Mas se assim é e se declaram que Portugal está nesta condição de não poder honrar os seus compromissos, então o que devia fazer era mesmo deixar de lhes pagar.
Mas eu próprio penso que é muito mais grave a crise que estamos a viver; é uma crise de sentido, de valores, é uma crise de humanidade. Parece que se perdeu a noção da dignidade e que tudo se pode comprar ou vender, tudo, mesmo a pessoa, pode ser objecto de troca e de negócio. É o caso entre nós da questão em torno das barrigas de aluguer. Então a mulher já pode vender-se ou alugar-se, em parte ou no todo? Surpreendeu-me até certo ponto, quando soube, o resultado do inquérito que foi feito - sabe-se já com que critérios de objectividade - sobre este tema a adolescentes e a estudantes universitárias, a preparar o ambiente para a proposta legislativa sobre este tema, que uma percentagem muito elevada das entrevistadas concordava com este aluguer de barrigas e que estaria mesmo disposta a entrar neste negócio. Além disso, fiquei verdadeiramente admirado com o silêncio (pelo menos não ouvi nada sobre este tema) de quem, em nome do seu patriótico catolicismo, deu a cara pela supressão dos feriados religiosos - uma causa de tal grandeza que justifica um lugar parlamentar -, e nada tenha feito ou declarado sobre este tema das barrigas de aluguer, um tema verdadeiramente merecedor, porque fracturante da dignidade da pessoa, neste caso da mulher, que é degradada a objecto de troca ou de aluguer, numa época de asfixia do espírito, na qual a crise financeira tudo justifica.
Como é urgente que se recorde o tema da tentação de Adão e de Eva que a Escritura narra, de quererem apoderar-se do fruto da árvore da vida e que por isso mesmo foram expulsos do paraíso, colegas que nessa aula me superaram no cesto do lixo, o lugar na sala
reservado aos alunos cuja prestação escolar só assim poderia ser classificada. Cair no cesto
do lixo foi rápido e relativamente fácil; sair de lá é que foi um cabo dos trabalhos e que exigiu da minha parte um esforço enorme, porque a concorrência entre os alunos já naquele tempo era muito forte e foi preciso muito tempo para que conseguisse não só sair do cesto do lixo, mas também alcançar um lugar mais adequado e as portas guardadas por querubins. Este relato bíblico tem uma potencialidade simbólica enorme para os nossos dias. E aquela outra palavra que o Senhor cita respondendo à tentação satânica: nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Ou a palavra de S. Paulo que exorta os cristãos a não profanarem o próprio corpo, porque é o templo do Espírito Santo.
Há limites que não se podem ultrapassar. Estas medidas fracturantes, fracturam não a sociedade, mas os próprios que as propõem, defendem ou aprovam e sobretudo quem as pratica. É urgente que as nossas consciências meio adormecidas despertem para a nossa responsabilidade e para as contas que havemos de dar não só diante do tribunal da história, mas sobretudo diante do tribunal de Deus, sob cujo juízo nos encontramos.
P. josé Jacinto Ferreira de Farias, scj Assistente Eclesiástico da Fundação
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