A reflexividade sobre a validade da existência fáctica de normas é precisamente aquela que, equi- libradamente, se apoia na lógica do "meio termo" aristotélico e não numa simples imediatez sentimental. Ela implica também a capacidade de raciocinar sobre contextos morais concretos, porque nós somos sujeitos reflexivos, podendo destrinçar os casos em que são relevantes certos normativos éticos que orientam e justificam os correspondentes comportamentos.
Na verdade, a prática e a justificação reflexivas de critérios e normas já estão a ser exercidas quando as atingimos. É como se subíssemos para um comboio em andamento - comboio esse em que, no nosso caso, as ditas disposições são o requisito de entrada. Os processos de socialização reflexiva (e de individualização que esta implica) introduzem-nos in media res (já no meio da viagem como a narração da História de Portugal ao rei de Me- linde) e confrontam-nos com modelos desses exercícios em marcha, tais como, a imitação, o fracasso e o êxito próprios e alheios que configuram os limites dessa aprendizagem. Mas, esse processo aprende-se principalmente na perceção da sua própria estrutura reflexiva: aprendemos maneiras de ser, sabendo que quaisquer dessas próprias maneiras podem ser adquiridas, imaginando e selecionando certas disposições entre muitas possíveis e praticando-as repetidamente em muitos contextos e situações. Nós, só sendo considerados simetricamente em contextos diferentes, é que conseguiremos comportar-nos desse mesmo modo; por outras palavras, só sendo tratados como seres reflexivos aprenderemos também a sê-lo. Note- -se que, mesmo assim, não se abandona a perspetiva de primeira pessoa que se nos apresentava na analítica da virtude aristotélica. Esta atitude é também a que se exige aos participantes na análise prática da ética e da moral discursivas: não participam como não implicados, mas como os próprios sujeitos daquilo que se debate ou como os próprios sujeitos da ação. As disposições que são exigidas aos sujeitos são as disposições que estes têm de aprender a exercer em contextos discursivos, embora sejam também disposições que podem ser exemplificadas e referidas como louváveis para outros na sua aprendizagem.
É sabido que o catálogo das virtudes variou ao longo da história e que essa variabilidade é determinada quer pelas apreciações que as várias sociedades fizeram sobre o que consideravam "bom" ou "desejável" quer pelas diversas teorizações que as filosofias em mudança realizaram. Ora, pelo exposto nos últimos artigos poderíamos apresentar alguma listagem de disposições morais básicas tais como se exercitam ou deveriam exercitar nos contextos discursivos práticos das sociedades contemporâneas. Não seria impossível associar certas pretensões de validade discursiva com essas disposições: a veracidade dos enunciados, a correção das normas ou a autenticidade das dimensões expressivas podem fazer-se corresponder a disposições dos sujeitos, tais como, a busca e o exercício da verdade em contextos teóricos e práticos ("ser uma pessoa verdadeira"), a retidão no cumprimento de normas e na avaliação de comportamentos regrados (ser uma pessoa reta"), ou a autenticidade na expressão do próprio "eu" ou de certos valores estéticos ("ser uma pessoa autêntica"). Os requisitos de simetria, de igualdade e de abertura do discurso podem também encontrar paralelos disposicionais nas ideias de justiça, imparcialidade e “visões largas" que apareciam nos catálogos clássicos, embora, às vezes, com outros nomes e com outras conotações. Esses exercícios de exemplificação não são impossíveis e poderiam ser esclarecedores para o tratamento de certos aspetos da socialização moral e para a crítica de práticas, valores e instituições da sociedade contemporânea.
In DM de Artur Gonçalves Fernandes
| <><><><> >
Sem comentários:
Enviar um comentário