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sábado, 22 de maio de 2010


A Música e as suas relações com a Liturgia

Este tema de suma importância, apesar dis- \ so, não tem sido devidamente versado. Julga¬mos mesmo que deixou de ser nota da Liturgia (em muitos casos) para se tornar tema de indivíduos que, por tal via, nela introduzem critérios e gostos subjectivos, geralmente duvidosos e marginais.Com a presença do Papa entre nós, oferecemos, por isso, algumas considerações, retiradas da Conferência que proferiu em Roma (ainda Cardeal), por ocasião do VIII Congresso de Música sacra, em 1985, ano internacional da Música.


«Entre a liturgia' e a música existiu desde o início uma relação fraterna. Quando o homem louva Deus, a palavra sozinha é insuficiente. A palavra dirigida a Deus transcende os limi¬tes da linguagem humana. Por esse motivo tal palavra, em todos os tempos, precisamente devido à sua natureza,, invocou o auxílio da música, do canto e da voz, da criação no som dos instrumentos. De facto, nem só o homem participa no louvor de Deus. A liturgia, como serviço divino, é o inserir-se nisto de que falam todas as coisas.

«Porquanto a liturgia e a música, devido à sua natureza, estejam intimamente ligadas entre si, o seu relacionamento foi sempre difícil, sobretudo nos momentos nodais de transição na história e na cultura. Não é, pois, admiração nenhuma quê também hoje seja de novo posto em discussão o problema da forma adequada de música na celebração litúrgica. Nos debates do Concílio, e logo a seguir, parecia que se tratava simplesmente de divergência entre pessoas dedicadas à prática pastoral, por um lado, e músicos da Igreja, por outro. Estes não queriam deixar-se coarctar por uma formalidade puramente pastoral, en¬quanto se esforçavam por afirmar a dignidade intrínseca da música como medida de valor pastoral e litúrgico próprio. Tinha-se, pois, a impressão que o conflito respeitava sobretu¬do o âmbito do uso da música. Entretanto, porém, a ruptura aprofundou-se. A segunda vaga da reforma litúrgica radicalizou o problema até aos seus fundamentos. Tra-ta-se agora da na-tureza da acção li¬túrgica como tal, das suas bases an¬tropológicas e teo-lógicas. O conflito que atinge a mú¬sica sacra é sintomático e descobre um problema até aos seus fundamentos. Trata-se agora da naturza da acção litúrgica como tal, nas suas bases an¬tropológicas e teo¬lógicas.



O conflito que atinge a mú¬sica sacra é sintomático e descobre um problema mais profundo, a saber: O que é a liturgia… «A liturgia está submetida a esta trajectória e este movimento é, para assim dizer, o texto fundamental a que se refere toda a música litúrgica, como sua medida. A música litúrgica é uma consequência resultante da exigência e da dinâmica de incarnação da Palavra, porque esta significa que também entre nós a Palavra não pode ser simples falar. O modo central com que a incarnação conti¬nua a operar é em primeiro lugar os próprios sinais sacramentais. Mas eles acabam por ficar privados de um contexto vital, se não estiverem imersos numa liturgia que, na sua totalidade, segue esta expansão da "Palavra na corporeidade e na esfera de todos os nossos, sentidos...

«A fé que se toma música é uma parte do processo da incarnação da Palavra. Mas este tornar-se música é contemporaneamente uni¬do, de modo totalmente único, àquela viragem interior do acontecimento da incarnação a que há pouco procurava acenar: Sobre a cruz e na ressurreição a incarnação da Palavra torna-se carne feita Palavra. Ambas se compenetram.. A incarnação não é retratada, torna-se definitiva somente no momento em que o movimento, para assim falarmos, se inverte: a própria carne se faz «logos». Mas precisamente este tomar-se Palavra tia carne cria uma nova unidade de toda a realidade que Deus tem em tal conta que a pagou com a cruz do Filho. O tornar-se música da Palavra é por um lado incarnação,





um trazer a si forças pré-racionais e meta-racionais, que são também tornadas sensí¬veis, o trazer a si o som escondido da criação, o descobrir o canto que repousa no fundo das coisas. Mas assim este tornar-se música é já também a viragem no movimento: não é ape-nas incarnação da Palavra, mas ao mesmo tempo espiritualização da carne. A madeira e o metal tomam-se som, o inconsciente e o indefinido torna-se sonoridade ordenada ple¬na de significado. Alternam-se uma corporiza¬ção que é espiritualização e uma espiritualiza¬ção que é corporização. A corporização cristã é sempre também espiritualização e a espiritua-lização cristã é corporização que penetra no corpo do «logos» incarnado.

«... Analisando a base antropológica dos variados tipos de Música, [poderíamos con-cretizar mais]. Há Música de agitação, que anima o homem para diferentes finalidades colectivas. Há Música sensual, que leva o homem ao erótico e à procura de outras satis-fações sensuais. Há Música só para entrete¬nimento, que não pretende dizer nada, mas deseja apenas interromper o peso do silêncio. Há música racionalista, na qual os sons ape-nas servem a construções racionais, mas não acontece nenhuma penetração verdadeira de espírito e sentidos. Certas canções inconsis¬tentes construídas sobre textos catequéticos, certas canções' modernas construídas em Comissões teriam lugar aqui. A Música que corresponde ao culto divino d’ Aquele que se fez homem e foi elevado na cruz, vive de uma síntese maior, mais extensa de espírito, intui¬ção e som perceptível. Pode dizer-se que a Música ocidental, do Canto Gregoriano pas¬sando pela Música das catedrais e da grande polifonia, pela Música da Renascença e do Barroco até Bruckner e além, vem da riqueza interior desta síntese e desenvolveu uma plêiade de possibilidades. Esta grandeza só existe aqui, porque pôde crescer unicamente do fundamento antropológico que uniu espi¬ritual e profano numa última união humana. E ela se dissolve na medida em que desaparece esta antropologia...» V. P.Maio de 2010

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