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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Espreitar ao ferrolho

 Espreitar ao ferrolho

Não sei por que uma porta há-de ter ferrolhos, pois antes do ferro, para o mesmo efeito, foram usados outros meios, sobretudo a madeira e não se chamavam “maderolhos” ou “madeirolhos”.




A porta é lugar de passagem e é composta de ombreiras ou almeiras. Há as ombreiras laterais onde podemos encostar os ombros, e onde as portas têm a sua segurança e movimento de rotação. Há portas de uma só folha, outras de duas folhas. Normalmente, nas de duas folhas, uma está fechada pela parte posterior por um fecho superior e outro inferior, e só se abre quando faz falta mais largueza.
Ambas as folhas podem ter ainda a segurança mínima de uma tranca que vai de ombreira a ombreira, ou uma tranqueta se vai da ombreira a uma das extremidades de uma das folhas, ou duas tranquetas que vão, cada uma, à sua folha encaixar no elo que prende a porta, ou vão a algum canto das travessas das portas antigas entre um buraco, orifício feito na ombreira de pedra, e entre esta e o tal canto em que se fixava. Hoje é diferente.
Para além das ombreiras, existem os cruzamentos, inferiores e superiores para as separar e tramar. Às de cima chama-se padieiras e às de baixo, soleiras.
A porta é essencialmente feita de um esquadro tramado por travessas horizontais embutidas nas travessas verticais, onde se prendiam com um grosso pau (ou caibro), normalmente cilíndrico, de madeira, enfiado em posição vertical, em dois ou três anéis chumbados na almeira e em dois buracos feitos, um na soleira e outro na padieira, ou só na soleira, tratando-se de uma cancela (ou cancelo). Nesse caso, não havia padieira. Os anéis, já foram uma forma mais tardia. Apareceram também as dobradiças constituídas por anéis que se entrelaçam a outros que são fixos e agarrados a uns chumbadouros, outras presas à portada, à folha e um eixo que se enfiava entre os ditos anéis entrelaçados, ou gonzos.
Os batentes são compostos de uma base e de uma escora ou quebra-mar para não ferir a madeira ao bater para chamar o dono da casa. Há batentes das mais variadas formas e artes, com formas antropomórficas, animalescas, ou maçanetas como uma mão de homem, mas mais vulgar de mulher, com anéis nos dedos ou mão a agarrar uma maçã que bate na escora, dependendo apenas da imaginação do artista. Este uso da mão feminina vem talvez sugerir a subtileza com que se deve bater a uma porta. De noite era sempre difícil ir bater à porta de alguém, sobretudo, se estivessem deitados e, com muito respeito, se aguardava pelo fim, quando a família estivesse em oração.
Para além dos batentes, que são só batentes e os batentes que são aldravas ao mesmo tempo, há outros componentes nas portas, nos portais (de madeira ou nos portões de ferro) que são os respiros e os visores antigos, os espelhos que são fruto de muita arte, não só para as fechaduras, como para os batentes ou aldravas. As fechaduras agora são normalmente incrustadas na vertical das folhas. Eram antes compostas pelo pano onde se encontrava o ferrolho, ou broca, o orifício por onde entra a chave até à contrabroca e a chapa de testa. Antigamente eram colocadas por fora da madeira, na parte posterior e bem presas com grandes parafusos, com chaves grandes e as chapas de testa com grandes buracos, onde entravam as linguetas, e a testa da fechadura funcionando como a parte fêmea.
Normalmente, a medida de uma fechadura era sempre pedida “da testa à broca”. O conjunto da fechadura era onde funcionava a chave e dava-se-lhe o nome de “pano” que pelo lado posterior, tem a contrabroca em algumas.
As aldravas antigas tinham uma forma de asa de caneca, um dedal onde o dedo calcava e manejava a lingueta para o trinco cair no gato, peça fixa, que tinha um feitio de rampa para o trinco poder subir e cair na sua fissura por dentro, na parte posterior da porta, deitava-se depois o gramilo que era móvel cujo eixo girava no gato para não deixar abrir do lado anterior à mesma.
Hoje todas as peças têm outros nomes, mas ainda há quem chame a todos os fechos interiores e fechaduras “os ferrolhos” da porta… “Levarás na boca uma porta e um ferrolho”, assim diz na Bíblia em Job, cap.38,v.10. O ferrolho neste caso era para ter a boca fechada, cerrada, não falar, não deixar que a língua possa deixar pronunciar os sons… boca cerrada.

A palavra ferrolho, para mim, está sempre ligada a um orifício. A palavra espanhola cerrojo (Cer+ojo) parece uma tradução mais razoável. Também o prefixo “bolt” nas línguas indo-europeias entra nas palavras com origem em anéis, argolas, encerrar, ou fechar uma sessão (cerrar em espanhol). Poderia ser uma fechadura que é o aparelho de fechar ou abrir. Bolt, em inglês, significa parafuso, e o parafuso fecha, entra na porca e prende, ou cerra algo. Se tirarmos o parafuso fica um buraco que pode ir para além da peça. Consubstancia um orifício, o dito ferrolho que era a entrada para a chave nas antigas fechaduras, por onde se espreitava…
Espreitar ao ferrolho é feio, diz-se em algumas regiões. Tapa-se o ferrolho, o orifício, o buraco, a fenda da porta onde se dá uma espreitadela com um olho fechado e outro aberto, como os médicos espreitam pelo endoscópio. Quanto se tapa o dito orifício só é possível olhar para o tecto com os dois olhos abertos e não há espreitadela.
Conversas sem ferrolho significa que são à vontade. “Cuidado, estão a espreitar”, mas espreita-se não só do buraco, ou orifício, por exemplo, da fechadura ou de uma fenda da porta, como também quando se abre uma janela ou se sobe a um muro, ou ao desviar uma ramagem, aproveitando para ver mais do que deve ou pode. É também querer ver o que não se deve ou não quer que seja visto que está a ver. Acontece o mesmo por timidez.
Há o jogo do ferrolho, o bolt é algo irritativo, rápido...como jogo...
No entanto, é certo que, em Latim é peça de ferro, que vem, de veruculum (ferro que corre), mas já no Grego significa fechadura de “máganon” ou saeta; em Espanhol é cerrojo; em Romeno, lua la fugá e Jeliazo; em Búlgaro e em Russo, Zaçob; em Ucraniano, Zaçeu; em Alemão, niegel. No latim também, pessulus, não tendo nada a ver com ferro. Num dicionário etimológico, buraco é uma depressão natural ou artificial num corpo. O veruculum latino vem da influência do facto da utilização do ferro e orifício aberto e estreito. Rigorosamente, bolt é parafuso e este fecha a porca (o orifício ou o anel e apertam as duas) e vem do latim ferramem ou cavus. Ferro em Francês é “fer”. Olho é “oeil” e ferrolho é “Oeil à queuefiletée”, nada a ver com ferro, mas com olho. A palavra ferrolho, tem a ver mais com olho, rosca e rabo, traduzido para português.
Ferrolho em Italiano traduz-se por “occhio à coda”, isto é, tem a ver com “olho ao rabo” que traduzido para português, nada tem a ver com o ferro, mas com orifício junto do rabo.
Ferrolho em Inglês é “eyebolt”, traduzido por uma só palavra que, decomposta, é olho e parafuso (ou porca). Em Alemão é traduzido por “Riusbozen”, nada tem a ver com ferro “eigen” nem com olho “auge”.
Ferrolho em Espanhol, “cerrojo”, tem mais a ver com olho fechado ou cerrado, é o que se fecha ou cerra e pode ser com outro material sem ser de ferro. Está muito semelhante ao Francês.
Quase todos os dicionários apresentam a palavra ferrolho com a mesma origem etimológica, mas um dicionário de português com dois volumes, que possuo, é de 1850, em terceira edição, de Eduardo Faria, diz-nos que vem do latim ferro e de olho (ferro+olho).
Há muitas palavras com o radical ou o prefixo ferro que não têm nada a ver com ferro: aferrolhar é fechar, ferronho igual a ferrenho, ferrão, ferrodilha (farrapilha), Ferrol, em Espanha, é de origem obscura, ferrolhar (fechar), ferroboro; feroz é entrar com força, violento. No Barroso, ferrelha é a pá que tira as brasas do forno. Aqui leva uma chapa semi-circular de ferro. O cão ferra e não tem nada a ver com o ferro. Eu ferro o sono, significa que durmo profundamente. Vamos ferrar o cavalo, pegar nele ou colocar as ferraduras que são de ferro.
Não podemos esquecer a arte dos nossos antepassados, presente no dia-a-dia mesmo da nossa terra. De Viana, tenho uma colecção fotográfica de todos estes componentes de portas, tanto de madeira como de ferro. Esquecer os ferreiros da nossa terra é correr para uma história sem base. É bom conhecer o passado para se viver melhor o presente, estar bem preparado para o futuro, aproveitando essa arte dos nossos antepassados.
A história local tem de ser feita, e a região só ganhava com isso, para uma maior identidade cultural da localidade, uma célula da globalidade. É na diferença, sempre clarividente, que se poderá fazer unidade ou globalidade corresponsável.
No entanto, a propósito do ferrolho, estou convencido de que era um orifício ao qual se espreitava, tendo obrigatoriamente de fechar um dos olhos para ver melhor com o outro aberto, procurar ver para além do mesmo. Muitos chamam ferrolho e não sabemos se se trata do ferro que corre, que desliza ou do anel ou orifício onde ele entra.

In Jornal “Paróquia Nova”


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