MEMÓRIA FESTIVA
RITMO DO CICLO
CARNAVALESCO
José Rodrigues Lima
“O homem da noite foi quem tudo fez. O homem do dia
não é mais que um escriva”.
Grety
A festa cíclica do Carnaval está
presente no meio rural e urbano. Porém, é nas comunidades tradicionais que o
encontramos mais genuíno, projectando-nos na ancestralidade, na memória
colectiva e no inconsciente cultural.
O Entrudo é festa da abundância:
“Ruge o pote e o prato”; “Haja vinho na caneca e porco na salgadeira”; “O
Entrudo é comilão, se queres saber ao certo dá-me carne, vinho e pão”. “Alegria
Alegrote, que está o rabo to porco no pote”.
Ainda se houve: “No carnaval ninguém
leva a mal; é o tempo da borga”. “O poder aqui não manda”.
Os festejos carnavalescos encerram
rituais cósmicos, de inversão, de ostentação e fertilidade.
LEVAR MAIS LONGE O NOSSO OLHAR
“Quando queremos estudar
os homem precisamos olhar á nossa volta; mas, para estudar os homem, precisamos
de aprender a levar mais longe o nosso olhar. Devemos observar as diferenças,
para lhes descobrir as propriedades”.
Jean Jaques Rousseau
REGENERAR O MUNDO
No
dizer de Roger Caillois, a festa pretende restaurar o caos primordial,
reactualizar as cosmogonias, teatralizando e mimando os gestos dos deuses e
antepassados, porque o tempo mítico da desordem é um tempo criador, e
necessariamente será também renovador do cosmos envelhecido. “A festa é assim
celebrada no espaço-tempo do mito e assume a função de regenerar o mundo”.
As
teses referentes à origem do Carnaval podem-se sintetizar em quatro:
vegetalista, celta, greco-romana e medievalista.
O
grande antropólogo Caro Baroja, autor do livro “El Carnaval”, verdadeira bíblia
deste ciclo festivo, escreveu que “quando o homem acreditou de uma forma ou de
outra que a sua vida estava submetida a formas sobrenaturais surgiu o Carnaval”.
O mesmo investigador afirma que “o Carnaval merece respeito”, estudo e análise,
não só como fonte de grandes criações plásticas, sendo de mencionar Brueghel e
Goya, mas também musicais, recordando Schuman, Berlioz e Paganini.
FUNDO INDO-EUROPEU
Procurando estar de
acordo com Luis Molet “O calendário procura, com efeito, traduzir ritmos cósmicos
exprimindo a interdependência do céu, da terra e do homem.
Devia pôr em correlação
todos os elementos e registos da natureza, as cores e os sons, o ao mesmo
tempo, servir para predição do início das estações do ano e das datas dos
plenilúnios, dos dias dos fastos e nefastos; os trabalhos agrícolas e das
festas, sacrificiais ou outras”.
O carnaval é um período
festivo intensamente difundido, onde quer que se tenha instalado a cultura
cristã e ocidental.
É, talvez, uma daquelas
festas cujos antecedentes mergulham raízes no fundo comum indo-europeu. Podemos
reconhecê-la, também, em certas cerimónias da antiguidade greco-latina.
DO IMBOLC CELTA ÁS SATURNAIS
Esta festa, de
periodicidade anual, esta relacionada com o sol, pelo que são necessários
ajustamentos com os calendários não solares, como o calendário litúrgico da
igreja cristã, ligado à Páscoa ou de outros lunares e empíricos, que de algum
modo se relacionam. Parece situar-se no ano seguindo um ritmos de 40 dias.
Se quisermos referir
alguns antecedentes romanos do carnaval temos de referir as antigas festas
Saturnais, Lupercais, Bacanais e Matronais dos Romanos.
Mas o carnaval inspirasse
num folclore mais basto, sendo de referir os cerimoniais celtas, como a festa
do imbolc celta. “L. Molet”
Muitos cerimoniais e
rituais encontram-se ligados ao ciclo agrário. Poem em ação duas práticas
cerimoniais: a coreográfica e o processional. E duas categorias: por um lado,
as cerimónias cíclicas, o carnaval-quaresma no final do inverno e a páscoa no
início da primavera. Por outro lado, as cerimónias puramente agrárias. (Forquin)
DEITAR FORA O INVERNO
Mircea
Eliade mencionando um texto do século VIII, afirma que as populações alemãs “in
mense Februario hibernum credi expellere”, que tem a seguinte tradução: “no mês
de Fevereiro deve-se deitar fora o Inverno”.
De
acordo com J. Heers, o Carnaval começou por ser uma procissão como tantas
outras, uma dança de primavera que, quase de certeza, recuperou antigas
memórias ligadas aos cultos pagãos de outrora, dos deuses campestres e das
forças da natureza. Alguns autores não hesitam em evocar, com a maior
naturalidade, a tradição das Bacanais, das festas da terra, do vinho e das
florestas. Sublinham-no por interpretação etimológica ao fazer derivar
directamente a palavra do latim do carro em forma de navio, “currus navalis”,
que ilustrava as procissões.
O
Carnaval como todas as festas profanas ou religiosas, sem dúvida de inspiração
muito antiga ou de impregnação cristã, apresenta numerosos espectáculos
públicos, reflexos espontâneos de uma civilização, referências preciosas para o
conhecimento de uma cultura.
O IMBOLC
CELTA
As teses referentes à origem do
Carnaval podem ser sintetizadas em quatro: vegetalista, celta, greco-romana e
medievalista.
A tese celta leva-nos a registar
alguns dados. Assim, E. Powell sublinha que os celtas acreditavam em poderes
mágicos que envolviam todos os aspectos da vida e do ambiente. O ano celta
achava-se certamente, dividido em duas estações, quente e fria, sendo os
períodos de transição marcados por quatro festas: Samain, Beltaine, Lugnasad e
Imbolc.
No início da estação clara,
Beltaine, celebrava-se a festa do deus Lug. Era a data das grandes assembleias
druídicas, em que se faziam fogueiras cerimoniais.
No primeiro de Fevereiro tinha
lugar a festa de purificação do fim do inverno, o IMBOLC. Antigamente
explicavam-na como sendo o começo da lactação das ovelhas. A festividade foi
substituída pela festa cristã de Santa Brígida, seguida pela Festa das
Candeias, como explica E. Powell, H. Hubert e F. le Roux e J. Guyonvarc’h.
O investigador C. Gaignebet, autor
do livro “Le Carnaval. Essais de mytologie populaire” (1974) sustenta: “há pois
motivo para perguntar porque é que um conjunto de ritos indoeuropeus, as
purificações no início de Fevereiro se conservam, por ventura inseridas nas
festas celtas, especialmente no Imbolc”.
Sem pretendermos fazer doutrina
não será que nos rituais do carnaval, e mesmo nas comemorações do enterro do
Pai Velho, não se conjugam reminiscências ancestrais dos celtas? É de referir
que no Lindoso há bastantes marcas culturais dos castrejos.
Devemos referir que Mircea Eliade,
mencionando um texto do século VIII, afirma que as populações alemãs “in mense
Februario hibernum credi expellere”, que tem a seguinte tradução: “no mês de
Fevereiro deve-se deitar fora o Inverno”.
Os povos antigos consideravam o
inverno como um reino de espíritos que precisavam de ser expulsos para que o
tempo mais quente voltasse. O carnaval pode ser considerados como um ritmos de
passagem da escuridão para a luz; uma celebração da fertilidade.
CATARSE COLETIVA
O Carnaval é uma festa de todos, dos simples e dos pobres.
Uma boa oportunidade para os sisudos se extroverterem e para
os grupos realizarem uma “catarse colectiva”, esquecendo o quotidiano que
esmaga para reinar a alegria, com “rituais cósmicos, de inversão, ostentação e
fertilidade”, reafirmando a identidade colectiva, conforme o antropólogo Joan
Prat.
O ENTERRO DO PAI VELHO
As festividades carnavalescas no Lindoso, aldeia do concelho da
Ponte da Barca, celebrizada pela sua história e respectiva barragem premiada,
revestem-se de particularidades, que lhes concedem características do Carnaval
da tradição portuguesa.
Os
octogenários, eles e elas, são pontos de referência obrigatória, para ajuizar
se tudo está a ser preparado conforme a tradição. Existe uma sabedoria
estratégica que passa pela escolha dos carros de tracção animal, do gado, pelo
jogo das campainhas, pelos jugos, pelos enfeites, pelas cantigas, pelos
tocadores de concertina, pelo horário dos cortejos, pelo trajecto definido, pelos
bailes, pelas dádivas comestíveis durante os desfiles, pelos
"barredouros", pelos disfarces, pela choradeira na queima do Pai
Velho, pelo testamento onde constam as ofertas do falecido, pelas referências
de índole social e pela ocultação da escultura simbólica, como autêntico
"churinga" de povos australianos.
As festividades
do Enterro do Pai Velho, que "apesar de não ter festeiros, sempre tem
festa", são consideradas as mais típicas da povoação, e podemos dizer,
únicas no norte do país.
Trata-se de uma
vivência ancestral, que contribui expressivamente para a "coesão social da
aldeia", e para revigorar a identidade colectiva de uma povoação histórica
e tradicional, que mantém vivências comunitárias.
O cortejo, para
além de outros elementos, é constituído por carros adornados, "simbólicos
e chiadouros", puxados pelo melhor gado da aldeia, belamente engalanado,
sendo um deles o do "Pai Velho", e o outro o "Carro das
Ervas".
O largo junto
do Castelo do Lindoso, mesmo ao lado do conjunto dos espigueiros e a eira
comum, é o espaço privilegiado onde se desenrolam as importantes cerimónias
anuais de transição, do ciclo do Inverno, frio e estéril, para o ciclo da
Primavera, mais quente e fértil, e que fazem parte do "inconsciente
colectivo".
Se pretendermos
estabelecer uma rota dos cerimoniais carnavalescos, para além do Enterro do Pai
Velho, teríamos que participar, também, na Dança dos Carpinteiros, na freguesia
de Gandra, e nas Mecadas de Verdoejo, do concelho de Valença.
Esta trilogia constitui
o Entrudo do Alto-Minho e vais merecer texto consistente pois tem merecido a
nossa atenção.
A FOGUEIRA SIMBÓLICA
O grande investigador
e filósofo das religiões J.Frazer, na sua notável obra “ RAMA DOURADA”, dedica
um capítulo aos festivais ígneos. Afirma que em quase toda a Europa “a crença
que o fogo promove o crescimento dos meses, o bem-estar dos homens e dos
animais, quer estimulando-os positivamente quer evitando os perigos e as
calamidades”.
Refere que
os celtas tinham festivais ígneos, queimando imagens cobertas de ervas, no meio
das quais os druidas encerravam vítimas.
W.Mannhart interpreta o costume de queimar as vítimas
como uma cerimónia mágica com a intenção de assegurar a luz solar suficiente
para as colheitas, levando-nos a concluir a importância agrária destes rituais.
È de
sublinhar a grande festa “Beltaine, (fogo de Bel),no primeiro de Maio, em honra
do Deus Lug, sob aparência da luz. Era a data das assembleias druidas, em que
se faziam grandes fogueiras cerimoniais.
Parece-nos
que a grande fogueira que no Lindoso queima o corpo empalhado do Pai Velho, os
enfeites e as ervas, tem um fundo celta.
Aliás, é de
acrescentar que inúmeros ritos de purificação pelo fogo, geralmente ritos de passagem,
são característicos das comunidades agrárias, e simbolizam os incêndios dos
campos que se adornam , depois, com um manto verde da natureza viva, de acordo
com J.Chevalier.
O fogo é,
acima de tudo, o motor de regeneração e simboliza a acção fecundante.
O Padre
António Vieira salienta nos “Sermões” que “o maior”, o mais nobre e o mais
nobre escondido tesouro do universo é o quarto elemento, o fogo.
É crença
popular que o fogo e fumo têm a virtude de purificar os campos e os animais, e livrar
os homens da influência dos maus espíritos.
Com as
cerimónias do entrudo/carnaval sublinhamos a passagem do tempo invernal para o
tempo primaveril.
José Rodrigues Lima
93 85 83 275
Bibliografia
BAROJA, Caro – El Carnaval, Madrid, Ed Taurus, 1983
COCHO, Frederico – O Carnaval em Galicia, Vigo,
Edições Xerais, 1995.
FERRO, X R. Marino – “O Entroide ou Praceres da
Carne”, “ Coruna, Edições do Castro, 2000.
HEERS, Jacques – Carnaval y Fiestas de Locos,
Barcelona Edições Peninsula, 1988
POIRIER, J. (Dir), História dos Costumes, Lisboa,
Editorial Estampa, 1998
VEIGA DE OLIVEIRA – Festividades cíclicas em Portugal,
Lisboa. Publicações Dom Quixote, 1984.
IZQUIERDO, Paulino – Los origens de el carnaval,
Ourense, Sociedade Cultural Albor, 1985.
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