A apresentação por José Carlos Loureiro
Baú de Memórias: um livro em três palavras
BAÚ
A capa do livro não mente. O baú converte-se em livro. Dito de outro modo, pode afirmar-se que o livro se assemelha a uma caixa onde contemplamos algumas memórias acumuladas pelo autor, Padre Artur Coutinho.
Nos nossos baús reunimos pedaços da nossa existência; depositamos o que nos importa; conservamos o que gostaríamos de recordar.
A memória é sempre seletiva. Ela não é um armazém de inertes, mas um reservatório daquilo que queremos reter, do que foi “quente” e nos envolveu afetiva e intelectualmente. A memória é o antídoto da perda, do esquecimento. Sempre que abrimos um baú voltamos ao vivido e, se não formos “cegos e surdos”, ele volta a aquecer-nos – daí resulta a nostalgia e a saudade.
Setenta e dois anos de vida plena permitem ao Padre Artur Coutinho acumular muitas recordações, informação e conhecimento (que tem registado em várias obras).
O livro “Baú de Memórias“ é, portanto, uma coleção de factos, de saberes e ditos, de topónimos, de palavras em desuso, de artefactos…. de muitos artefactos. Nas suas páginas deparamo-nos com artefactos do mundo rural (o sachador, a gamela, a padiola, a dorna, a talha de azeite, o serrão, a rodilha…) e objetos do uso quotidiano (os canecos, os cântaros, as canecas, a malga, a masseira, os talheres, a touca, o chapéu…). Sobre todos apresenta alguns dados cedidos pela História, mas o olhar é sobretudo antropológico. Os objetos falam dos homens e das suas vidas, ainda que sejam coisas, aparentemente, insignificantes, como uma tranca; efémeras, como um espantalho; ou engenhosas, como um manípulo de uma porta do curral.
Neste baú conservam-se, especialmente, testemunhos do mundo rural. A vida campestre sobressai nas descrições minuciosas dos processos de semear, cuidar e colher os produtos da terra. Explica-se como se faz uma “meda”, como se cultiva o milho, como se processa a sacha, como se transporta o fruto colhido. São práticas em desuso ou abandonadas, com dimensão comunitária, que marcaram a identidade do Alto Minho. O que resta é, na maior parte das circunstâncias, mais encenação (para usufruto do turista) do que prática (quotidiana).
O mundo atual, urbano e higienista, esqueceu que a bosta selava a porta do forno onde se cozia o pão, que era preciso despejar o bacio na fossa e que o penico, o lavatório e a banheira eram sinais de riqueza. De tudo isto se fala no livro.
Encontramos, igualmente, uma extensa recolha de palavras e de topónimos. Arrisca-se uma nova justificação para o topónimo “Viana” (p. 119). Apresentam-se dados históricos sobre Mazarefes e alguns dos seus habitantes. Não faltam orações e ditos de cariz religioso. Por lá, encontramos, também, a Serra d’Arga, como não podia deixar de ser.
SINOS
O primeiro texto refere-se aos sinos, da Igreja de S. Nicolau de Mazarefes. No tempo da infância do Padre Coutinho “eram (e cito) esses que mandavam”. A vida de outrora era ritmada pelo tempo solar e pelo tempo litúrgico cristão. Ainda que houvesse um relógio no frontispício da Igreja era o sino que determinava a ordem dos dias e numa época em que a sincronia era uma raridade, havia um sino que “mandava”, cuja voz altiva e soberana se ouvia distintamente na freguesia, seguindo-se o toque de outros. Imperioso o sinal, pelo meio dia, impunha uma breve interrupção no quotidiano. Como afirma “as pessoas, quase sempre, estavam a trabalhar e descobriam a cabeça, faziam silêncio e rezavam” (p. 14).
Durante séculos, o “tempo do relógio” não existiu. Havia o tempo solar, cíclico, o das estações do ano e dos dias; o tempo litúrgico, linear e orientado, da Criação ao Juízo Final; do nascimento de Cristo à sua Assunção, do nascimento do Homem à sua morte; o tempo político, um ciclo, o das eleições e dos mandatos, do ano escolar e dos jogos olímpicos, dos orçamentos e dos planos financeiros; é o tempo da Pólis, do Estado. Na verdade, usando expressões a que o autor se refere: “o tempo das vacas gordas” dá sempre lugar ao “tempo das vacas magras” (p. 264). O tempo de outrora era qualitativo.
Hoje, o tempo dominante é o do relógio, aquele que não conhece “nem os dias nem as noites, nem as estações nem as festividades” (Pomian). Tudo nos lembra a passagem do tempo. O relógio enxameia o espaço (o relógio da torre, quase único, deu lugar a uma multiplicidade de marcadores de tempo: relógio de ponto, relógio de pulso, relógio no telemóvel… - cada vez mais ligado ao corpo – controlando a vida à milésima de segundo).
Já não vivemos o tempo definido pelo ritmo natural. De igual modo, perdemos a ilusão de que ganharíamos tempo com a eletrificação, a mecanização, a robotização e a globalização da informação. Com efeito, longe de nos aliviar, a sociedade atual – tecnicista, da eficiência, da mediatização – impõe um ritmo demencial. Por isso, recordar o “tempo dos sinos” não é apenas uma questão de saudosismo, mas um modo de refletir sobre o presente e imaginar outro futuro.
Mas o tempo é, também, irreversível, o que permite que o autor diga, referindo-se à palmatória da escola da sua infância, “ainda bem que passou esse tempo!...” (p. 94). Na certeza de que não haverá outro “tempo da toma de óleo, de fígado de bacalhau” (p. 288), mas que chegará sempre o “tempo das castanhas” (p. 289); com a reconfortante ideia de que é benigno abandonar algumas coisas do passado – deixá-las no “tempo dos afonsinhos” (p. 170) – o autor sabe que o tempo emergente nem sempre traz o melhor. Contudo, confia. E afirma “a nossa confiança nos outros deve revelar que desejaríamos que eles tivessem a mesma relação connosco” (p. 285).
O tempo do homem é finito, por isso, (e cito) “há que Amar e não perder tempo”, pois “o Amor é a teia com que se urde a vida” (p. 285). A condição humana, da finitude, é razão maior para a gratidão.
GRATIDÃO
O autor afirma, a dado instante, que um dos seus mandamentos de vida é “não ser escravo dos hábitos, ser imaginativo e criativo com plena liberdade para que cada dia possa nascer e morrer”. A biografia do Padre Coutinho não desmente este modo de ser. Este livro é mais uma prova da sua vitalidade e a concretização daquilo que afirma na pág. 282: “luta por um futuro com coragem e sem medo, com uma memória larga e não tão curta que depressa passa e esquece”. Para que não nos esqueçamos da riqueza da vida das outras gerações, para que saibamos usar o que herdamos em prol da definição de um futuro melhor, o baú que o autor nos abre é mais do que uma caixa de velharias, cheias de pó; é um repositório de informações e conhecimentos que coloca nas nossas mãos à espera que delas façamos o melhor uso. Com efeito, o passado não interessa se não for para que possamos compreender melhor o nosso presente e antecipar futuros. Como escreveu Balzac, “a esperança é a memória que deseja”.
A memória permite-nos vivenciar o mundo fora do quadro do tempo mecânico, regido e quantificado ao segundo; do tempo “frio”. Convocar a memória é funcionar em contraciclo; trazer o conforto da chama acesa.
O que recordamos é sempre uma pequena parte do que vivemos; a ponta de um iceberg. Para o Padre Coutinho – que fecha o livro afirmando que “o grande segredo da felicidade está no viver o presente com Alma” (p. 311) – o baú é resultado da sua gratidão, pela vida que experimentou (e experimenta em cada novo dia). Este livro é mais uma, entre muitas, dádiva do Homem que personifica a Vida; por isso lhe estamos gratos.
José Carlos Loureiro
(texto da apresentação do livro “Baú de Memórias”, realizada no dia 30 de novembro de 2019, na Biblioteca Municipal de Viana do Castelo)